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Sonho Xamânico

pequeno conto de Luís Fernando Graça


O canto dos pássaros… os halos solares.

Tambores ao longe… chamam-me.

Caminho… caminho por prados verdes e ocres.

No meio de lilases e papoilas… ao fundo e ao redor, malmequeres amarelos e brancos.

Vou tocando com os dedos no trigo mais alto, misturado com este idílico local.

Caminho…

Ao longe, muito longe no alto, duas figuras, à sua frente uma fogueira beirada por pedras, num fogo calmo, quase sacramental.

Uma muito alta, masculina, hirta, altiva, personalidade vincada de respeito e sapiência, olhar ancestral de compreensão e tolerância.

A outra, feminino… divino feminino… mãe terra, sabedoria, natureza, doçura, elegância e amor. Emoções sentidas…

Os tambores cada vez mais perto intimidam, sem se deixarem ver.

Olho para trás, na planície, alguns animais… ursos, javalis, veados, garças e outros pássaros.

Caminho… agora mais perto daqueles dois seres.

Ela branca com a idade do Tempo, não perdendo a sua silhueta jovem e bela apesar das rugas, apesar das marcas desse mesmo tempo.

Ele com pinturas na cara, não de guerra.. pinturas que oferecem alguma paz e muita reflexão.

Aproximo-me… devagar. Não sei o que dizer… não sei como dizer... não sei em que língua falar.

Num gesto repentino e simultâneo, sentamo-nos no chão em triangulo. A fogueira transmite paz… nem calor… nem frio... nem receio…paz.

Os animais param as suas actividades e observam-nos… os tambores calam-se.

Em triângulo, ficamos sentados tentando olhar os olhos uns dos outros até nos cansarmos.

Com o cansaço, fechamos os olhos, elevamos o pensamento e sem explicações entramos levemente e devagar na mente uns dos outros… ficando apenas uma mente global… sem palavras e sem explicações.

Desconhecendo a origem, ouço uma voz a ressoar em mim, pois a minha mente neste momento já não me pertence.

“Este é o planeta que queríamos, esta é a harmonia que construímos, este é o legado que sonhámos transmitir, este é o nosso propósito no planeta… deveria ser o propósito de todo o ser humano.

A ligação ao divino, ao cosmos, ao universo, a um deus.. o que quiseres utilizar para identificar a palavra “amor”, tem de ser retomada o quanto antes, nem o planeta e nem os seres com energia vital vão sobreviver por muito mais tempo.

Olhem para dentro de vós, que tipo de seres humanos são? De quem se gostam de rodear? O que fariam em nome da riqueza, em nome de uma vida farta em bens materiais? O que fariam para possuir o que mais ninguém possui? Ou… pelo contrário, que importância tem isso tudo nas vossas vidas?

Depois de experimentares esta paz, a verdadeira paz, que importância tem todo o resto para ti?

O cosmos deu te uma família para cuidar, proteger e amar. Deu-te a primeira inspiração e dar-te-á a última expiração. Nesse intervalo concedeu-te uma vida. Uma vida cheia de coisas boas, que por vezes se transformam ou transformas em coisas menos boas e por vezes em graves problemas.

Nada na tua vida tem de ser perfeito… não pode ser perfeito. A imperfeição é o mote para a evolução. Só a dor nos marca o suficiente para mudarmos… nem sempre aprendemos a lição… nem sempre mudamos para melhor… e aprende… o melhor é sempre o caminho do amor. Mas, não tem sempre de ser assim, muda o padrão dos teus pensamentos, analisa as tuas prioridades, desfaz a tua revolta e muda o teu mundo para o mundo que estás a ver e a sentir aqui.

Tudo é mente, tudo é pensamento… nos teus piores momentos podes fechar os olhos, ligares-te ao cosmos e “fugir”… para aqui. O teu mundo será sempre onde a tua mente estiver e não obrigatoriamente onde está o teu corpo. A tua mente és tu desde o principio dos tempos. Seja um mundo verdejante ou coberto de prédios, tenha o que tiver todos os seres humanos que o habitam aspiram o mesmo que tu…liberdade e felicidade… a única coisa que difere de uns para os outros é o caminho labiríntico, onde alguns, na ânsia da sua certeza se perdem e buscam estas regalias em locais onde só existe sofrimento.

Ninguém está ou conhece o caminho certo, estamos todos e apenas num caminho… o nosso. Um caminho de tortura, amor, ódio, paixão, amargura, fidelidade, traição, pensamento, sofrimento, dor, alegria, exultação e paz.

Só tens de saber como o vais percorrer, que pedras vais pisar, como vais aceitar as tuas imperfeições e as do teu semelhante, no fim… como vais reagir às intempéries da vida, como reages ao erro do outro e como gostarias que o outro reagisse ao teu erro. Porque vais errar… e o outro também, porque tu podes amar… e o outro também, porque tu podes confiar… e o outro também.

Nós existimos muito antes de todos os “deuses” que vocês criaram. Os “deuses” para que vocês erguem monumentos e obras magnificas. Os “deuses” que vos ensinam a amar o outro, os mesmos que vos apelam a matar o próximo, que vos apelam a eliminar todos os que não pensam como vós, todos os que não reflictam a vossa imagem no espelho da vossa ignorância, como se o objecto divino pairasse sobre um e apenas um ser humano no seio de sete biliões.

Todos os “deuses” são amor, misericórdia, paixão, guerra, desgraça… de ódio, todos os “deuses” criados pelo homem. E… todos os “deuses” criados pelo homem sofrem de todas as inferioridades do homem. “Deus fez o homem à sua imagem e semelhança” – o que quer que isso queira dizer. O homem apenas criou os “deuses” que mais necessitavam para dominar os outros homens.

O cosmos, o universo, deus ou amor… estão dentro de ti, tal como ódio, ambição desmedida, desamor, apatia e a cobiça.

Cabe a ti… e só a ti… traçar o caminho que terás de percorrer entre a tua primeira inspiração e a ultima expiração… será esse percurso que fará toda a diferença.

Escolhas o que escolheres, estarás sempre certo, muitos precisarão do teu amor para evoluírem e o mesmo numero precisará do teu ódio para evoluir igualmente.

Terás de decidir, não como vais fazer evoluir os outros, mas como tu irás evoluir. Não te percas no caminho, vieste ao planeta para evoluir e não para fazer evoluir os outros… amas, a escolha é tua.”


O som dos tambores aumentou ligeiramente, abrimos os olhos ao mesmo tempo. A paisagem estava igual os animais continuavam nos seus afazeres.

Havia um sorriso na cara de ambos, sem uma palavra acenaram com a cabeça, num gesto de agradecimento por estar ali e ao mesmo tempo que tinha terminado o nosso encontro, podia partir.

Respondi ao aceno e voltei as costas. Desci o caminho voltei a passar as mãos pelo trigo, olhei os malmequeres, as papoilas e os animais… já não eram os mesmos… agora, dividira o planeta com eles.

A meio do caminho de volta, olhei para trás e lá estavam os dois, olhei para o chão a sorrir.

Novamente uma voz ecoou na minha mente… “Podes olhar e voltar atrás quando e como quiseres. Estamos aqui desde sempre e estaremos aqui até ao fim dos dias.. e de alguma forma… tu também”

O canto dos pássaros e os tambores… nunca deixaram de se ouvir.


Luís Fernando Graça.


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